“Vocês têm tem que morrer, suas assassinas.” “Arranca os úteros, bando de satânicas.” “Ao invés de abortar, se mate.” “Morre uma puta que fez um aborto, eu vibro como se fosse um gol do meu time.” Esses foram alguns dos comentários que invadiram os perfis dos atores e realizadores do vídeo “Meu Corpo, Minhas Regras”.
O vídeo “viralizou” nas redes sociais, atingindo em uma semana 12 milhões de visualizações. Ele foi idealizado a partir dos temas de “Olmo e A Gaivota,” longa que codirigi com Lea Glob, no qual acompanhamos a gravidez da atriz Olivia Corsini. O filme, em cartaz, nasceu do desejo de investigar o que se passa na mente de uma mulher durante esses nove meses. Queríamos sublinhar o absurdo de quase não haver retratos disso no cinema, apesar de todo ser humano vir ao mundo por meio de uma gravidez.
Em “Meu Corpo, Minhas Regras”, homens e mulheres aparecem “grávidos/as”, com o figurino da protagonista do longa. Estão ali Alexandre Borges, Bruna Linzmeyer, Bárbara Paz, Johnny Massaro, Fernando Alves Pinto, Ricardo Targino, Julia Lemmertz, Mumu, Nanda Costa, Gustavo Machado e Julia Bernat.
Um dos objetivos era colocar a questão: o que aconteceria se os homens engravidassem? O vídeo destaca também a falta de representação das mulheres no cinema. Segundo o conhecido Teste de Bechdel, apenas em 30% dos filmes as mulheres falam e, quando falam, falam sobre homens, ou com homens. Muitas vezes elas não têm nome nem história.
Fomos acusados de vilipêndio religioso e de apologia ao aborto. A situação chegou ao absurdo de um vereador de Campinas propor uma moção de censura ao vídeo.
Jamais “pregamos” o aborto. Defendemos sua descriminalização, medida que, em outros países, tem levado à diminuição de sua ocorrência. A taxa de abortos nos EUA (onde é legalizado desde 1973) é duas vezes menor do que no Brasil. No Uruguai, após a legalização em 2012, a média de abortos caiu de 33 mil para 7.000 por ano.
Desde então, não foi registrada nenhuma morte materna por consequência de aborto. No Brasil, abortos clandestinos são a quinta causa desse tipo de morte. Como diz a OMS, “acabar com a epidemia silenciosa de abortos clandestinos é assunto urgente de saúde pública”.
A violência contra a mulher tem diversas facetas no país. É impressionante que, no século 21, falar em descriminalização do aborto gere comentários tão abusivos. Na última semana, me senti num país bem diferente daquele que imaginava habitar. Um país no qual crenças religiosas são brandidas com ódio.
Como dialogar com aqueles que se apresentam tão certos de suas verdades? É urgente resistir a essa intolerância. Aprender com os pássaros a buscar a resistência das alianças, como numa revoada.
Na peça “A Gaivota”, de Tchekhov, que inspirou nosso filme, um rapaz vê uma gaivota voando sobre um lago e atira nela com uma espingarda. Ao ver a ave morta, o escritor Trigorin concebe o argumento para um conto: “Uma jovem vive na beira de um lago. Ela ama o lago, e é feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece um homem”¦ e por pura falta do que fazer, ele a destrói, como aconteceu com essa gaivota”.
Nós, gaivotas, somos agora protagonistas de nossas histórias. Nós, gaivotas, não aceitamos mais sermos silenciadas. Machistas e fascistas não passarão. Nós, passarinho.
PETRA COSTA, 32, é cineasta, diretora do filme “Olmo e A Gaivota”, em cartaz
*Publicado originalmente na edição desta quinta-feira (19) do jornal Folha de S.Paulo