mercado, sociedade e Estado, mais atrapalha do que ajuda a entender e melhorar o País. Na última década renasceu no Brasil a ilusão de que tudo seria feito e “salvo” pelo Estado. Deu no que deu, com mensalão, petrolão, ineficiências múltiplas e um amálgama degenerado de “capitalismo da companheirada” que nos levou à estagnação econômica. Que ultrapassemos isso é meu desejo.
Quem sabe superaremos o primitivismo político de considerar como “neoliberal” tudo o que é necessário fazer para que as finanças públicas e a administração funcionem bem, respeitando suas possibilidades reais, mais ou menos elásticas conforme as circunstâncias, mas nunca infinitas, propiciando um clima favorável para que as pessoas, as organizações e as empresas possam expandir suas potencialidades. Tomara que, ao mesmo tempo, superemos o primitivismo de considerar como “de esquerda” quem for contrário a essas práticas.
Claro que se pode e deve distinguir entre “esquerda” e “direita”, com suas variantes intermediárias. Mas a oposição correta é outra: sempre foram considerados de esquerda os que querem mudar estruturas para beneficiar a maioria, pela via da “revolução” ou das reformas (a esquerda democrática é reformista). A direita clássica costuma se opor às mudanças, em particular a “reacionária”, pronta
para impor sua lei e ordem a qualquer preço.
No Brasil não estamos diante desse dilema. Não há partidos relevantes “de direita”, tampouco “revolucionários”, à esquerda. Quando necessário, há os que se definem como liberais, de um lado, e socialdemocratas, de outro. Ainda muito numerosos são os setores que representam o atraso (práticas clientelistas, lenientes com a corrupção e com o arbítrio do Estado). Meus votos são para que não
enfrentemos uma oposição entre esquerda retrógrada e direita golpista.
Sendo progressista, portanto, “de esquerda”, desejo que se consiga alcançar consensos que melhorem o sistema político partidário, dando lhe certa coerência ideológica. Para dar passos iniciais bastam três emendas à Constituição: voltar a aprovar a “cláusula de barreira”, quer dizer, exigir dos partidos um número mínimo de votos em âmbito nacional e em certo número de Estados para lhes
assegurar plena representação no Congresso, acesso ao Fundo Partidário e ao horário gratuito na TV; proibir as coligações entre partidos nas eleições proporcionais; e vedar o uso de marketing político nas TVs. A TV seria usada apenas para debates entre candidatos ou para suas falas diretas à audiência. Isso reduziria drasticamente o custo de campanha. O financiamento privado, se mantido, deve limitar se a algo como R$ 1 milhão por conglomerado de empresas, dado apenas a um partido, e não a todos, o que cheira corrupção. O financiamento da pessoa física seria livre, desde que limitado em valores.
Passo mais audacioso pode ser a introdução experimental do voto distrital nas eleições para as Câmaras Municipais. Embora em tese eu prefira o distrital misto, essa proposta, do mesmo modo teria a vantagem de não alterar a regra constitucional que exige a proporcionalidade e, além disso, de ter mais adeptos do que o sistema distrital misto. Essa modificação abriria espaço para, no futuro,
estender a prática às eleições estaduais e nacionais. Ao longo do tempo, o espectro político encolherá e se tornará mais nítido.
Atualmente a polarização PT PSDB distorce o significado do voto, já que os ideários dos dois partidos não são necessariamente antagônicos. Nascidos como “primos” no final do regime militar, esses dois partidos pertencem à família “social democrática”. Não obstante, um se acredita mais “à esquerda”, com ingredientes de socialismo revolucionário e, juntamente com eles, elementos autoritários; o outro é mais liberal, embora decididamente favorável à regulação pública de setores da economia.
Na refrega, o PT empurra o PSDB para “a direita” e, em reação, o PSDB empurra o PT para o lado do “atraso corrupto”. Não existe direita organizada no espectro partidário brasileiro. PT e PSDB distinguem se mais pela contemporaneidade do último, que reconhece explicitamente a necessidade de dar ao mercado o papel que lhe corresponde nas sociedades contemporâneas, da mesma forma que não
atribui ao Estado todas as virtudes. O PT, quando também age assim, é a contragosto, levado pela realidade.
A maior diferença entre os dois partidos é o modo como enxergam os processos políticos que levam à mudança: o PT crê numa vanguarda partidária que pela via eleitoral ganha o governo, apropriase do Estado, infiltrao com militantes ou “aliados” e, a partir disso, alavanca as reformas da sociedade. O PSDB, mais liberal, quando controla o governo não crê que deva juntá-lo ao Estado nem deseja usar este último como ferramenta quase exclusiva das reformas e dos avanços sociais, pois acredita mais na dinâmica da sociedade civil como mecanismo de mudança. E a direita onde fica? No atraso, no clientelismo, na luta por verbas e ministérios, mas sem expressão propriamente políticoideológica. O mesmo se diga da esquerda revolucionária, refugiada na teoria e no romantismo.
Meu desejo para 2015 é que tanto o PSDB quanto o PT e as novas forças políticas (como a Rede ou o Partido Novo) incorporem em suas crenças e práticas algo mais contemporâneo. Que olhem para as questões da sustentabilidade, da mobilidade urbana, da segurança, educação e saúde, entendendo as funções do mercado e do Estado no século 21; que não tenham medo das mudanças de estilos de vida,
não fujam da discussão sobre regulação das drogas e se lembrem de que o debate político, tal como é hoje, dá às pessoas comuns a sensação de que os políticos estão numa conversa “entre eles”, sem falar “com a gente”.
* Fernando Henrique Cardoso foi presidente da República.
**O artigo foi publicado no Estado de S. Paulo e pode ser lido aqui
***Rede45