Seja quem for o presidente eleito em outubro, seu principal desafio será converter a ação do Estado em qualidade de vida para a população, um desejo crescente que se reflete na cobrança por serviços públicos mais eficientes. Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, melhorar o funcionamento da máquina pública foi a chave para o Plano Real no combate à inflação, 20 anos atrás, mas o tema ainda é um ponto preocupante.
“O que importa hoje não é o ‘quantos por cento’ de inflação temos”, diz FHC. “O que assusta agora é perceber que os fundamentos não estão funcionando tão bem quanto deveriam. O conjunto da obra está bamboleante.”
Fernando Henrique vê o País “pagando o preço” pela falta da reforma política, que ele próprio reconhece como uma frustração. Para sair dela, afirma, é preciso um entendimento entre PT, PSDB e PMDB, mas há um empecilho: as incessantes “pedradas” entre tucanos e petistas. “Lula é hegemônico, quer tomar conta de tudo, esmagar o adversário”, diz. “Não há como fazer acordo.”
Seu governo ficou marcado pela estabilização. O de Lula, pela distribuição de renda. Como será lembrado o governo Dilma? E qual marca deve buscar o próximo governo?
Essas marcas são todas parciais, mas, enfim, são marcas. O governo Dilma vai ser lembrado como uma espécie de cabra cega. O mundo teve a crise e fizeram uma tentativa de crescimento pela expansão do crédito, pelo consumo e pela ingerência do Estado — como uma volta aos anos 60 e 70. Nada disso está funcionando muito bem. O governo ficou, assim, sem marca. Ela foi apresentada como uma grande gerente e as circunstância não permitiram que se visse isso.
E para a frente, qual seria o norte?
O Brasil, do ponto de vista material, melhorou muito. Então, por que nos sentimos perdidos hoje? No passado, achamos que bastava fazer a economia crescer e isso nos levaria ao Primeiro Mundo. Ora, estar no primeiro mundo é ter qualidade de vida! Se você for a qualquer pequeno país europeu – Portugal, Dinamarca, Croácia que seja — todos são infinitamente menos crescidos que o Brasil em termos econômicos, mas a população se sente no Primeiro Mundo. Porque ela tem educação, segurança, respeito à lei. No futuro, um governo, para deixar uma marca, vai ter que insistir nos intangíveis — o que é difícil, porque as pessoas não vão sentir no começo.
Um ponto de forte debate é como fazer ajustes no Estado sem ameaçar a distribuição de renda. É possível?
Quando fizemos o Plano Real, a crítica do PT, do PDT e de não sei mais quem era que os trabalhadores, mais uma vez, iriam arcar com os custos. Não aconteceu isso. Aconteceu o inverso. A taxa de pobreza caiu de 40% para 30% com a estabilização e houve aumento dos salários. Fazer ajustes não quer dizer apertar o cinto do povo. Vou dar outro exemplo. Se for olhar a proporção do PIB que é gasto em bolsas e comparar com a proporção do PIB que é gasto com subsídios para setores empresariais, via BNDES, vai ver que é a mesma coisa. O governo dá para cima e dá para baixo. É mais fácil você parar com o subsídio do que com a bolsa. As bolsas vieram para ficar.
Qual é o balanço dos 20 anos do Real?
O Real não foi um plano apenas para controlar a inflação, mas para controlar as causas da inflação. As empresas não estavam em má situação. A economia havia crescido algo como 5%. Quem estava em má situação era o Estado. Se não resolvêssemos a situação do governo, não haveria como controlar a inflação. Isso significava repor a ideia de que contratos valem, que quem deve precisa pagar, que Estados e municípios precisam arcar com suas contas. Reorganizar o mecanismo de endividamento interno e o orçamento. A moeda foi a parte imediata. Levamos anos trabalhando para colocar em ordem o mecanismo institucional. A Lei de Responsabilidade Fiscal é do ano 2000. Hoje, o que importa não é o “quantos por cento” de inflação. O que assusta agora é perceber que os fundamentos não estão funcionando tão bem quanto deveriam. O conjunto da obra está bamboleante: a Lei de Responsabilidade Fiscal não é cumprida adequadamente, o gasto público não está sendo controlado, o endividamento é elevado.
E qual a maior frustração com o Real?
As reformas ficaram pela metade. Era muito difícil negociar com o Congresso. A reforma política — eu tomei a decisão de não começar por ela, porque se começássemos por ela não sairíamos dali — era importante. Deixamos para o Congresso fazer. Estamos pagando o preço pela falta da reforma política. Se queremos uma democracia bem avaliada pela população, temos que fazer a reforma política. Quando fui à África do Sul (no funeral de Nelson Mandela, em 2013), os ex-presidentes estavam juntos e eu disse a todos: nós somos responsáveis pelo caos. Ninguém acredita nesse sistema que está aí. Por que não chegamos a um denominador comum? O Sarney se sentiu atraído pela ideia. Falei com o Lula. Mas não prosperou.
E a presidente Dilma, como reagiu?
Ninguém reagiu. Quando houve a crise, a presidente tentou. Mas a coisa foi mal coordenada. Para fazer isso é preciso realmente liderança — e liderança dos partidos. É preciso entendimento entre PT, PSDB e PMDB. Assim teremos a maioria. Mas vou colocar o problema de outra maneira. Todos os governos sempre acham que fizeram muita coisa — e incluo o meu. Porém, há um problema sério de gestão no Brasil: o resultado não chega na ponta. Você faz o projeto, monitora os números, faz isso e aquilo. Os que estão no mundo oficial estão felizes, mas o cidadão não sente a diferença. Quando cheguei à Presidência da República, o Sistema Único de Saúde era uma proposta da Constituinte, mas não funcionava. Era um inferno. Montamos. Hoje há o SUS. Os governos têm uma série de programas na área da Saúde. As pessoas podem receber medicamento de graça até em casa. O cidadão, porém, não sente que isso existe porque funciona mal.
E qual é a causa disso?
Falta de gestão. Há um tempo, não agora, me perguntaram no PSDB qual seria um bom slogan para a campanha. Eu disse: em vez do que fez o Barack Obama nos Estados Unidos, com o Yes, We Can, deveríamos ter o Yes, We Care — nós prestamos atenção em vocês, nós cuidamos. O povo se sente descuidado. É preciso ver como essa máquina pública funciona e atacar de frente essa grave falta de gerenciamento.
Se o seu candidato, Aécio Neves, chegar ao Planalto, o que deveria fazer para impedir que a política continuasse a ser mais do mesmo?
A primeira condição é ter uma agenda. A segunda, fazer aliança para cumprir essa agenda. Terceiro, fazer tudo publicamente. Não quer dizer que no meu governo foi sempre assim, não. Mas eu tinha uma concepção do que queria fazer. Eu queria estabilizar a economia, dar acesso à educação, melhorar a saúde, fazer a reforma agrária, acertar a Previdência, que não consegui. Procurava fazer com critério.
Como Aécio Neves vai brigar contra o maior tempo de Dilma na TV?
Os políticos têm uma obsessão pelo tempo de TV. Muito tempo pode ser bom, mas pode ser mau também. O povo ouve, às vezes, mas nem sempre. Tem momento em que ele fecha o ouvido. Hoje, o programa eleitoral terá um peso menor do que no passado, por causa das mídias sociais. Não sei se a campanha vai ser decidida na televisão.
Como, então, vai ser decidida?
O importante é o desempenho do candidato. Eu costumo fazer o seguinte: começa o programa eleitoral, eu tiro o som. Porque o que você transmite não é só o que fala, é como você fala, qual é o seu jeitão. É subconsciente. E eu acho que o Aécio tem um bom jeitão.
A economia vai pautar a eleição?
A economia pauta sempre. O bolso pesa mais que o coração ou, pelo menos, tanto quanto. O que vai pautar é a carestia. O bolso gasta mais que a bolsa, quando falamos dos mais pobres. A vida está cara. Isso as pessoas sentem. É a feira que vai pautar a campanha.
Na luta para chegar ao 2º turno, Eduardo Campos começou a bater em Aécio. Isso vai atrapalhar uma futura aliança entre eles?
Os dois são racionais e sabem qual o limite. Mas no segundo turno o eleitorado não segue líderes. Veja as pesquisas de opinião. Dilma, no Datafolha, está na frente, 36%, Eduardo 8%, Aécio 20%. No 2.º turno Aécio vai pra 40%, Campos pra 38%. E não teve nenhum líder no meio disso! No segundo turno, o que vai contar muito é a rejeição.
Na sua relação com o ex-presidente Lula, o sr. falou em parar de jogar pedra um no outro. E as pedradas quase sempre dizem respeito à corrupção. O que falta para superar essas diferenças?
O que falta é vontade dele. Ele é hegemônico, quer tomar conta de tudo. E quem quer tomar conta de tudo quer esmagar quem? O principal adversário! Quando fizemos a transição do meu governo para o dele, logo eles definiram que o inimigo era o PSDB. Não era adversário, era inimigo. No mesmo dia falaram em herança maldita. É o hegemonismo: “Eu sou tudo. O mundo começa comigo, eu sou o bom, os outros são maus.” Não há como fazer acordo.
*Publicado originalmente na edição de domingo (27) no jornal O Estado de S.Paulo