Estamos vivendo tempos interessantes. Tempo de paradoxos. Pessoas que defendiam a liberdade de expressão – “é proibido proibir” – defendem agora o veto às biografias. Ou seja, quer gostem ou não da definição, defendem a censura prévia.
Explico: atualmente, o Código Civil brasileiro só permite biografias desde que sejam autorizadas pelo biografado ou por seus herdeiros, no caso de pessoas mortas. Por outro lado, corre no STF uma ação de inconstitucionalidade contra essa exigência considerada altamente restritiva ao direito de informação e livre expressão. Pois para surpresa da sociedade, há cerca de um mês, um grupo de artistas autodenominado, ironicamente, “Procure Saber”, tem se mobilizado para manter essa exigência da autorização prévia e ainda incluir a possibilidade de participação financeira nessas biografias – o que tem gerado enorme polêmica. Ora, ser remunerado pelo seu trabalho é justo, mas ser remunerado pela sua história? E, nesse caso hipotético, os “coadjuvantes” também teriam participação financeira? Isso é um disparate – ninguém é dono da história.
O direito à privacidade é um ideal. Mas onde está o limite entre o público e o privado? A imprensa, felizmente livre, publica diariamente entrevistas, perfis, matérias etc sobre as mais variadas pessoas, públicas ou não. Além do mais, por questões de segurança, inúmeras câmeras espalhadas pela cidade fotografam e filmam nossos passos 24 horas por dia. Sem falar neste mundo tão informatizado como o de hoje, onde nossas informações são trocadas e armazenadas na internet, sujeitas à violações. Portanto, neste cenário atual, quem pode garantir que tem sua vida pessoal intacta? Nem a presidente Dilma pode fazer esta afirmação. O fato é que atualmente nossa valiosa privacidade está esfarrapada. É quase uma utopia.
“O homem público é um livro aberto”, opinou há dias o ministro do STF Marco Aurélio Mello. A realidade se impõe. É um paradoxo que pessoas públicas, tão empenhadas em se fazerem conhecidas, ao mesmo tempo queiram controlar sua exposição. Esse controle é incompatível. Na verdade, qualquer biografia sempre vai incomodar o biografado – salvo se ela for chapa-branca ou contar com o monitoramento do próprio. Será, p.ex., que os torturadores da ditadura militar autorizariam suas biografias? Cobrariam royalties pela história? Inusitado. Em resumo, autorização/censura prévia à biografias são inadmissíveis, e podem ainda vir a ser precedentes perigosos contra a liberdade de expressão. O mais razoável é que caso o biografado se sinta difamado na obra, que ele processe o biógrafo na justiça e peça indenização, quando devida.
É bom lembrar também que uma biografia não é necessariamente única e definitiva. Michael Jackson e Churchill, por exemplo, contam com mais de uma centena, cada um. Nada impede novas biografias de alguém, com novas informações, novas perspectivas, novo ângulo, novo recorte do tempo etc. Qual é a verdadeira? Não existe. Cada biógrafo deve ter liberdade para retratar o seu ponto de vista dos acontecimentos.
Concluindo, conhecer o contexto – histórico, social, político, pessoal etc – faz toda diferença no entendimento de uma obra e de uma época. Para os historiadores, a dimensão individual de um político, por exemplo, é a chave num processo histórico. Como analisar uma época, desconhecendo a alma dos seus principais personagens? Como apreciar plenamente o trabalho de Van Gogh, p.ex., sem saber que ele sofria de problemas emocionais e que amputou a própria orelha, conforme retratado em quadro de sua autoria? E como entender a obra de Shakespeare sem saber que ele desfrutava de relações próximas e delicadas com a rainha Elizabeth I da Inglaterra e que, por isso, muitas vezes, nas suas peças, usou de metáforas para se expressar? A privacidade que ainda temos é valiosíssima e deve ser preservada na medida do possível. Mas o direito à informação e livre expressão é um bem maior e deve ser privilegiado para o bem de toda a sociedade.
Ana Luiza Archer é engenheira