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“SOBRE NOSSOS VELHOS”, por Dell Santos

Dell-Santos.jpgAgora, senhoras e senhores, que finalmente chegamos ao tão sonhado e imaginado século XXI, um grande dilema se impõe à humanidade: o que fazer com os nossos velhos? A humanidade, inegavelmente, envelheceu, e temos então que nos preparar para saber lidar de forma conveniente com a questão da velhice. Rodando pelo mundo, afora as raras exceções de alguns rincões remotos da Ásia e da África, reparamos que o envelhecimento é fato inegável, mesmo nos lugares mais pobres. O tratamento que se deve dar ao idoso é uma questão importantíssima nos dias de hoje, tanto em aspectos mais práticos, como a partilha de investimentos que provocou uma importante discussão sobre reforma previdenciária na França e em outros países, quanto em aspectos mais abstratos, mais psicológicos, como a forma mais correta de nos relacionarmos com nossos velhos.

Desponta aí, antes de qualquer coisa, uma questão semântica: como nos referir à idade avançada? Nos últimos tempos, temo-nos deparado com questões vocabulares muitas vezes desnecessárias, eufemismos por vezes inúteis. No Brasil, por exemplo, não podemos nos referir a pessoas negras como pretas, pois soa ofensivo. Já nos Estados Unidos, o termo é “black” (preto) e não “nigger” (negro): se um “black” for chamado de “nigger” poderá levar isso como uma ofensa. Esses eufemismos parecem de fato inúteis, e eu não vejo sentido neles. Hoje o padrão é dizer afro-descendente. Mas alguém pode contestar que afro-descendentes somos todos nós, uma vez que a espécie humana se originou entre o Quênia e a Tanzânia, na região do Kilimanjaro. Não estranharei se daqui a alguns anos o correto for dizer “afro-descendente de pigmentação cutânea mais acentuada”. Parece piada, né? Mas estranhamente é o que constatamos. Da mesma forma não vejo problema em nos referirmos a nossos idosos como velhos, pois é uma forma carinhosa de chamá-los. Não vejo problema em dizer terceira idade, em lugar de melhor idade, ou mesmo velhice, pois essa idade em alguns aspectos é melhor mesmo, como a maturidade, a maior “bagagem” de vida, a paciência para com os menos experientes, mas em outros é de fato pior, como o corpo e a mente que infelizmente por vezes não respondem tão bem.

Na minha experiência de vida tenho inúmeras memórias de convivência muito feliz que tive com meus velhos, os velhos de minha família e da família de meu marido, alguns já falecidos, outros, felizmente, ainda entre nós. Antes de qualquer coisa, e isso digo por experiência própria, o mais importante na boa convivência com os velhos é fazer com que eles não se sintam excluídos, não se sintam uma “nota dissonante”. Conheci muitos idosos que viviam na saudade de seu tempo, de sua terra natal. Mas também conheci outros que viviam a dizer que seu tempo era o agora e sua terra era essa em que estavam. Procurei sempre, na medida do possível, fazer com que os velhos se sentissem em casa, adaptados, contextualizados nos tempos de hoje. Nossa relação com eles só será muito boa quando entendermos que eles já foram jovens, e passaram pelos mesmos dramas pelos quais passamos hoje, e que nós também seremos velhos e passaremos pelos dramas deles. Como diz Milton Nascimento, “Eu era criança, hoje é você, e, no amanhã, nós”. Não quero com isso montar frases de efeito, nem dizer obviedades, nada disso. Quero apenas lembrar que muitos dos ícones das gerações libertárias, como os escritores da geração beat, Kerouac, Ginsberg, Bukowski, ou os músicos da geração hippie, como Hendrix, Janis Joplin e Joan Baez, que em suas épocas eram o que de

mais jovem podia haver, hoje podem ser vistos pelos olhos de uma juventude menos atenta ou menos instruída como “velharia”. Como diz Belchior: “O que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo”. Por isso muitas vezes quando pego meus filhos ouvindo um bom rock’n roll faço questão de lhes apresentar os Beatles, os Stones, mostrar que isso é da minha geração, da geração de meus pais, e vai continuar sendo da geração deles e dos filhos deles, pois o que tem qualidade não tem idade. Da mesma forma, se um filho meu me pega ouvindo um Mozart e diz que é coisa de velho, falo pra ele que esse cara regeu sua primeira orquestra com quatro anos de idade, portanto a música clássica é pra molecada também.

Falando em música, que é uma das coisas que mais ligam as pessoas de diferentes idades, culturas, níveis sociais, não consigo nunca me esquecer que o funk e o rap, que parecem os estilos mais joviais de nossos tempos, quando surgiram, nos idos dos anos setenta e oitenta, tiveram pessoas mais velhas como seus verdadeiros “papas”, foram claramente “batizados” por essas pessoas: o funk foi claramente “criado” pelo embalo soul de James Brown e Aretha Franklin, e tanto o funk como o rap em seus primeiros anos receberam a “bênção” de grandes ídolos do jazz, como Herbie Hancock, Quincy Jones (produtor da Motown, de Michael Jackson e dos grandes astros da música “black”de todos os tempos) ou mesmo Miles Davis, todos eles velhinhos na época. Ainda no mundo dos balanços musicais, não posso nunca me esquecer do verdadeiro “revival” de Jorge Ben, agora Benjor, nos anos noventa, para aquela geração: eles não entendiam como aquele “velhinho” que tinha sido descoberto por seus pais podia contagiar tanto aquela molecada, tocando uma guitarra alegre e vibrante, acompanhado por sua Banda do Zé Pretinho e usando um boné voltado pra trás! Ele, definitivamente, não era um velho!

Não quero com tudo isso, senhores, tratar a questão de forma amena e usar jargões já desgastados, do tipo “idade está é na cabeça de cada um”, etc., etc. Quero apenas mostrar que a forma mais adequada de nos relacionarmos com nossos velhos é mostrando a eles que eles pertencem ao nosso tempo, e que nós pertencemos ao tempo deles: que eles podem e devem se deixar contagiar com a energia das canções modernas e que nós podemos e devemos entrar no embalo das Big Bands ou nos emocionar com os filmes de Chaplin. A humanidade se revela inteligente quando dá vôos ousados sobre os preconceitos, quebrando barreiras e mostrando que os seres humanos são todos, ao fim e ao cabo, seres humanos, e nada mais do que isso, independentemente de sua cor, sua etnia, sua religião, sua preferência sexual.

Pra desfechar sobre o assunto dos nossos velhos, nunca me esqueço que meu marido certa vez me disse: “Tem muita gente que diz que gostaria de morrer dormindo. Eu, não. Quero morrer bem acordado, pra ter a consciência de meus últimos momentos. É uma forma de ser lúcido até o fim”. Trazer os velhos à lucidez, fazê-los sentir-se pertencentes ao hoje, ao aqui e agora, engajá-los, politizá-los, tentar puxar a consciência deles, as melhores lembranças do que eles fizeram em vida, de suas melhores experiências, seus melhores momentos, dos maiores tesouros que nos deixaram em vida, como os bons momentos de convivência conosco, essa é a melhor forma de convivermos com eles. Pois no fim das contas os velhos vivem aqui, dentro de nós, como nós vivemos dentro deles: muitas vezes quando ando de carro com meu marido e pergunto a ele por que ele sempre evita colocar o limpador de pára-brisa no modo mais veloz quando a chuva é fina ele me diz que é porque o avô dele ensinou assim, e isso vai viver com ele, dentro dele, pro resto da vida. Mesmo quando fazemos coisas super-joviais, como o primeiro beijo dado por um adolescente, trazemos conosco nosso contexto, os modos aprendidos com as outras pessoas, com os velhos, na maioria das vezes. Lembro-me que nos últimos dias de vida de meu amado tio Cornélio, assim como nos da avó de meu marido, a amada dona Tatiana, era isso que fazíamos: falávamos com eles sabendo que sua memória já não respondia tão bem, mas tentando sempre fazer com que eles lembrassem das lindas coisas que fizeram em vida, das lindas aventuras intelectuais, das belas experiências humanas que nos deixaram. Enquanto os jovens saíam às ruas pra se divertir nós estávamos ali, cuidando dos velhos da melhor forma, despertando neles as lembranças tão lindas de vida, que quando suscitadas não morrem jamais e ficam para os jovens como a mais linda e mais jovem experiência que pode ser deixada.

Tenham todas e todos uma excelente semana!

Dell Santos

Coordenadora de Eventos do Secretariado Municipal de Mulheres PSDB-SP.

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